Especialistas explicam que interesse em fetiches é comum e relacionam a curiosidade como expressão da sexualidade.
Por Amanda Haikal, Beatriz Jacomini, Carolina Castro e Julia Valeri
As parafilias, popularmente conhecidas como fetiches, costumam ser vistas como temas cercados de tabu e mistério. No entanto, segundo especialistas, essas expressões de desejo sempre fizeram parte da sexualidade humana — e precisam ser compreendidas dentro de seus contextos culturais e históricos.
Parafilia é definida como um interesse sexual intenso e persistente voltado a objetos, situações ou práticas não convencionais, como voyeurismo (observar pessoas nuas ou em atos sexuais sem que elas saibam), exibicionismo (exibir a própria nudez) e sadomasoquismo (sentir prazer ao causar ou receber sofrimento físico ou psicológico).
“Essas práticas não surgiram recentemente; acompanham a sexualidade humana desde tempos antigos”, explica a psiquiatra Louise de Lemos Bremberger. Registros históricos aparecem em diversas culturas: na mitologia grega, por exemplo, a história de Leda e o Cisne retrata a relação sexual entre Leda, rainha de Esparta, e Zeus disfarçado em forma animal. Já nas culturas pré-colombianas, especialmente entre os povos da região de Lima, no Peru, vasos cerâmicos trazem cenas explícitas da vida sexual cotidiana — como uma mulher amamentando uma criança durante o ato sexual. Na Idade Média, em contraste, a religiosidade e a moralidade eram os principais reguladores das expressões sexuais.
O historiador Rodolfo Cruz ressalta que a noção de “parafilia” é, na verdade, recente. Levando em conta filósofos e críticos sociais, ele destaca que não havia registros de parafilia como entendemos hoje nas civilizações antigas — mas sim práticas de prazer que assumiam diferentes conotações. Antes disso, práticas ligadas ao prazer eram descritas de outras maneiras: como forma de demarcação de status na Antiguidade, como pecado na Idade Média ou como parte da natureza na literatura romântica moderna.
“Na Antiguidade, observava-se o culto ao corpo como um exercício artístico e de compreensão do lugar do homem na natureza. Já na modernidade, os mesmos mitos gregos, como Narciso ou Édipo, passaram a simbolizar o extremo da natureza interna do homem, como no exemplo de Dorian Gray. Na contemporaneidade, eles descrevem arquétipos da psique e apontam para condutas entendidas, na maior parte dos casos, como não saudáveis e catalogadas no DSM-5 [Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais]”, completa.
No século XIX, obras como Psychopathia Sexualis (1886), de Richard von Krafft-Ebing, buscaram enquadrar essas práticas sob uma ótica médica, muitas vezes patologizando comportamentos simplesmente por serem diferentes. Segundo Cruz, foi nesse período que dispositivos como disciplina, biopolítica e segurança passaram a atuar para garantir o controle e a governabilidade, elevando a ciência à condição de guia para regular o indivíduo e o coletivo. “A partir do controle dos prazeres, controla-se o corpo, a família, a mulher, o homem, a criança e, como consequência, as estatísticas: taxa de natalidade, índice de consumo, grau de escolaridade, nível de saúde populacional, entre outros”, detalha. Ele ressalta que, embora psiquiatria e psicologia tenham se aprofundado no século XX e XXI, do ponto de vista social e cultural, a tese de Foucault sobre o controle dos prazeres segue influente — mesmo que, desde a relativização dos anos 1990, não se saiba bem se esses prazeres devem ser controlados, administrados ou simplesmente deixados livres.
Apenas recentemente, com a chegada de manuais como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), de 2013, e o Código Internacional de Doenças (CID-11), de 2022, a psiquiatria passou a diferenciar claramente parafilia de transtorno parafílico, na qual, este último envolve sofrimento pessoal ou dano a terceiros, enquanto a simples existência de interesses incomuns não constitui, por si só, um distúrbio.
Saiba mais sobre o que são parafilias e como elas podem estar presente na vida de casais de forma saudável, no vídeo abaixo:
Pesquisas contemporâneas mostram que o interesse por práticas parafílicas é mais comum do que se imagina. Um estudo canadense, chamado A prevalência de interesses e comportamentos parafílicos na população em geral: uma pesquisa provincial, indicou que quase metade dos participantes demonstrou interesse por ao menos uma categoria parafílica. Outro levantamento, intitulado A prevalência de interesses parafílicos na população checa: preferência, excitação, uso de pornografia, fantasia e comportamento, realizado na República Tcheca, apontou que cerca de 31% dos homens e 13% das mulheres relataram preferências nessa área. Contudo, como destaca Bremberger, nem toda fantasia é transformada em prática — seja por escolha pessoal, barreiras emocionais como vergonha e medo de julgamento ou pela ausência de comunicação aberta entre parceiros.
Segundo Cruz, talvez estejamos vivendo, desde os movimentos hippies dos anos 1960, o período de maior tolerância social em relação a essas práticas. “Isso não significa que as sociedades concordem ou participem, mas que, nos canais mainstream, as práticas se tornaram não somente regra como públicas, perdendo o lugar de hábitos alternativos. É possível ver isso no aumento de plataformas destinadas a produzir e vender conteúdos sobre o assunto, em podcasts que abraçaram o tema, em celebridades que fizeram carreira e cresceram com o nicho que consome tal conteúdo”, aponta.
Infográfico mostra resultados de uma pesquisa feita com estudantes do Centro Universitário Barão de Mauá. Veja as estatísticas abaixo:

A influência da internet e do cinema
O impacto da cultura digital e do audiovisual sobre os fetiches é inegável. Filmes como 50 Tons de Cinza ajudaram a popularizar dinâmicas de dominação e submissão, enquanto a internet ampliou drasticamente o acesso a conteúdos, comunidades e discussões sobre práticas sexuais alternativas.
Um levantamento feito em 2024 pelo aplicativo KinkD, publicado pelo O Globo, mostrou que o Brasil está em 6° lugar entre os países que mais buscam parceiros dispostos a praticar BDSM — sigla para bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo, envolvendo práticas eróticas baseadas na troca de poder, controle e dor para alcançar prazer.
Bremberger destaca que, embora comunidades BDSM já existissem em clubes e festas nos Estados Unidos e Europa desde os anos 1950, a internet tornou o acesso e a interação muito mais amplos. “A web permite que curiosos conheçam essas práticas sem necessariamente se envolver diretamente, além de aumentar as possibilidades de contato para quem já integra essas comunidades”, aponta a psiquiatra.
No podcast abaixo, ouça a conversa sobre a popularização dos fetiches, influenciada por filmes atuais:
Compreensão e responsabilidade
Embora a curiosidade por práticas parafílicas seja comum, a inserção dessas experiências na vida sexual exige cuidado. Bremberger ressalta que práticas seguras dependem de comunicação clara, respeito mútuo e consentimento entre os envolvidos. Muitas pessoas vivem bem apenas com suas fantasias, sem necessidade de levá-las para a prática; outras exploram essas dinâmicas em casal para aumentar a intimidade ou ampliar o repertório sexual. Cada situação demanda atenção individual.
Cruz complementa, trazendo uma análise de Camille Paglia: “São nas expressões válidas de desejos — a autora pensa principalmente a partir da arte e da pornografia — que as pessoas aprendem a controlar de certa forma um impulso primitivo. Pensar dessa maneira interessa mais histórica e sociologicamente do que simplesmente mapear o interesse em ‘apimentar’ relações.” Ele lembra ainda que, do ponto de vista social, as parafilias contemplam um universo vasto de propósitos e não podem ser reduzidas apenas à exploração ou à afirmação de poder, sem considerar o contexto em que ocorrem. “Atualmente, é mais comum que se considere as parafilias como um desvio da norma, podendo inclusive ser classificadas como práticas criminosas”, observa.
Num contexto em que o acesso à informação cresce e os tabus sexuais vêm sendo progressivamente questionados, compreender as parafilias sem preconceito é essencial para evitar estigmatizações e respeitar a diversidade das experiências humanas. O foco, mais do que rotular comportamentos como “certos” ou “errados”, deve ser garantir relações saudáveis, consentidas e seguras.